O Memória ABERT resgata depoimento dado à Revista Rádio & TV (Revista da ABERT), nº 131 – Encarte Especial. Nela João Calmon, nosso primeiro presidente, conta sua história e a origem da associação. Matéria de agosto de 1998.
O capixaba João Medeiros Calmon, 81 anos, foi fundador da ABERT, em 1962, e reeleito sucessivamente até 1970. É Presidente de Honra da entidade e ainda trabalha no Instituto Legislativo Brasileiro, anexo ao Senado Federal, onde prepara o seu livro de memórias.
Ele dirigiu jornais, rádios e estações de televisão e chegou a diretor-geral e depois presidente do Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados. Foi deputado federal e senador pelo seu Espírito Santo natal. Foi um polêmico lutador em defesa da radiodifusão livre e pela democracia no governo de esquerda de João Goulart, mas também soube ser conciliador, quando necessário.
Por sua dedicação, durante décadas, às causas da educação, recebeu, do diretor-geral da Unesco, em 1990,
o título de embaixador honorário da organização.
– Por que fundou a ABERT, em 1962?
– Tomei a decisão de propor uma Associação nacional de empresas de radiodifusão porque os inimigos da radiodifusão livre queriam um regime de censura, queriam acabar com a liberdade de imprensa e estavam mobilizados para isso. Tramitava no Congresso um projeto de lei para criar o Código de Telecomunicações incluindo rádio e televisão, e entendi que deveria também mobilizar os companheiros em defesa daqueles princípios democráticos. Como eu era o presidente do sindicato das empresas de radiodifusão do antigo Estado da Guanabara e também diretor-geral dos Diários Associados, fiz uma convocação a todos os concessionários do Brasil inteiro para que nos concentrássemos em Brasília e pressionássemos os parlamentares para que não aprovassem dispositivos daquele projeto, de iniciativa do governo Goulart, que seriam liberticidas, restringiriam a liberdade.
– Esse apelo foi atendido?
– O nosso apelo foi compreendido e bem aceito. Os concessionários de rádio e televisão deràm provas de instinto de conservação (sorrisos) e vieram de todos os cantos do País, da Amazônia ao Rio Grande do Sul, pois sentiam que estava em risco a própria sobrevivência da radiodifusão livre, o setor privado. Demos uma demonstração de força e fizemos uma concentração de radiodifusores como jamais havia sido feita até então. Cada radiodifusor conhecia os parlamentares de seu Estado e trabalhava o corpo-a-corpo junto a eles, numa pressão válida e lícita para não serem aprovados os dispositivos que considerávamos antidemocráticos. Eu consegui apoio de diversos parlamentares importantes, com destaque para o senador gaúcho Daniel Krieger, da UDN. Graças a isso, a grande maioria dos dispositivos foi derrubada, numa grande vitória. E no jantar comemorativo, no Hotel Nacional, propus que aproveitássemos aquele momento de união para criarmos uma entidade de que lutasse permanentemente pelos interesses da radiodifusão. A idéia foi aceita pelos companheiros e assim nasceu a ABERT – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, para qual fui escolhido presidente.
– O Sr. dirigiu os Diários Associados por muitos anos. Como conheceu Assis Chateaubriand?
– Quando estudante do último ano da Faculdade Nacional de Direito no Rio, na década de 30, trabalhando inclusive como vigia na Feira Internacional de Amostras, eu era sócio do Clube Guanabara. Num domingo fui remar, mas não havia barcos. Então resolvi nadar na piscina quando apareceu um barco, com um senhor de chapéu de palha, que precisava de alguém para remar. Um empregado, apelidado Moreno, me indicou ao dono do barco e lá saímos pela baía. A essa época, com 20 anos, eu era de esquerda (risos) e trazia embaixo do braço o jornal “O Radical”. O cavalheiro notou e me perguntou porque que eu estava lendo “um jornal sórdido” como aquele. Depois passamos pela antiga praia do Flamengo, onde dois meninos brincavam – um deles, Fernando, era filho desse senhor. O outro, segundo disse, era um menino pobre que ele adotara para que seu filho aprendesse a ter “sentimento social”, conforme explicou. Eu não sabia quem era aquele misterioso dono do barco, mas comentei que lera um artigo do jornalista Assis Chateaubriand defendendo a candidatura presidencial de José Américo de Almeida justamente porque achava que ele tinha um sentido social. “Esse Chateaubriand é um canalha!”, bradou o homem provocante. Eu não disse nada, não concordei. Imagine se tivesse concordado … (risos)
– E ele não se identificou?
– Nem se identificou e nem o reconheci, embora já soubesse da fama de “entreguista” do Chateaubriand junto aos meus amigos de esquerda. O fato é que ele continuou a conversa, fazendo muitas perguntas para saber quem eu era, que minha mãe era paraibana e meu pai baiano e outras amenidades. Ao se despedir, no Clube, convidou-me para voltar no próximo domingo e ser seu hóspede em São Paulo. Depois que ele foi embora, perguntei ao Moreno de quem se tratava. Só então soube que era Assis Chateaubriand que, trinta anos depois, escreveria um artigo sobre mim com o título “Ele remava comigo …”
– E como ingressou nos Associados?
– Chateaubriand me perguntou se eu tinha vocação para jornal. Respondi que não sabia. A minha experiência era só de escrever contos, um deles até já publicado pelo Diário da Noite, aliás um dos jornais dos Associados. Ele então mandou que eu procurasse o secretário de redação do Diário da Noite, onde acabei admitido como repórter. Depois o Chateaubriand resolveu me nomear diretor de sua empresa Correio do Ceará, em Fortaleza, cargo que assumi com 21 anos de idade.
– Como chegou à presidência do grupo?
– A certa altura da sua vida Assis Chateaubriand, o fundador das empresas que compunham as Emissoras e Diários Associados, então um grupo nacional forte e influente, resolveu doar suas ações a um condomínio formado por ele e mais 21 companheiros das empresas da sua organização, que possuíam jornais, revistas e estações de rádio e de televisão em praticamente todos os Estados. Era o que ele chamava de “a minha família cívica”. Ele era o presidente e eu o único vice presidente, escolhido por ele mesmo. O grupo era dividido em três administrações, como compartimento estanques: o Edmundo Monteiro, já falecido, dirigia os órgãos em São Paulo, Paraná e Santa Catarina; o Leão Gondim de Oliveira, primo do Chateaubriand, dirigia as revistas – O Cruzeiro, A Cigarra, outras menores e um laboratório; e eu era o diretor-geral para os demais Estados, incluindo Rio Grande do Sul. Após a morte de Chateaubriand, fui eleito presidente desse condomínio pelos meus companheiros de organização.
– O Sr. também participou da implantação dos Diários Associados em Brasilia?
– Chateaubriand era um homem genial mas tinha seus preconceitos. Um deles era contra a construção de Brasília e a mudança da capital. Ele achava que JK queria, em via, construir um monumento para ele mesmo. Eu era favorável a Brasília e argumentei que a nova capital era irreversível, tinha apoio do Congresso e do povo e que o nosso grupo deveria ter presença também em Brasília. Ele concordou, finalmente, mas com a condição de que não pedisse dinheiro para isso. Então fiz o óbvio. Naquele tempo os grandes bancos não estavam em São Paulo, como hoje, mas em Minas Gerais. Fui a Belo Horizonte e convenci os banqueiros a darem contratos de publicidade, descontados pelos próprios bancos como os juros respectivos (sorrisos). E com o dinheiro dos mineiros instalamos o Correio Braziliense – nome sugerido pelo próprio Chateaubriand – a TV Brasília e uma rádio. E ainda fizemos a ligação de microondas de Belo Horizonte a Brasília, no alto dos morros, para transmissão inclusive da inauguração da nova capital – aliás um feito técnico extraordinário para a época, à base de equipamentos improvisados e inadequados. Eu estava no Rio, ao lado de Chateaubriand já paralítico, rezando para dar tudo certo na transmissão da festa. Quando ele viu aquilo se emocionou, à lágrimas e até beijou minha mão dizendo: “Obrigado meu filho …”. O João Batista Amaral, da Record, passou telegrama a Chateaubriand dizendo que a transmissão ao vivo, naquelas condições, tinha sido uma proeza mundial. As outras emissoras passaram depois a festa da inauguração de Brasília por meio de vídeo.
– Por que deixou a presidência do Condomínio Acionário das Emissoras e Diários Associados?
– Foi quando o governo Figueiredo deu um golpe e cassou as concessões de várias de nossas principais estações de televisão, no início dos anos 80. Senti-me no dever de renunciar, num gesto de sobrevivência do próprio grupo, pois se continuasse na presidência do condomínio a hostilidade do governo também continuaria em relação a nós. Após alguns meses, o condomínio elegeu, por unanimidade, o nosso atual presidente, Paulo Cabral de Araújo, radialista de origem, que havia começado no Ceará, depois foi diretor em Pernambuco e em Minas Gerais.
– Quais as razões do governo Figueiredo para cassar aquelas emissoras? Dizia-se que era por causa de um discurso seu na Câmara dos Deputados.
– Isso foi um dos pretextos. Foi aprovada uma Lei que não permitia que um grupo tivesse mais de um número limitado de emissoras . Como tínhamos mais que o dobro, ele cassou algumas concessões, aproveitando o pretexto de greve por atraso de salários de profissionais de nosso grupo no Rio e em São Paulo, que integravam a Rede Tupi de Televisão. A essa época já sofriamos a forte concorrência de outras redes de TV, que aumentaram sua participação no mercado publicitário, diminuindo, naturalmente, nossas receitas. O governo deu um prazo para abrirmos mão e passamos adiante outras emissora de TV. Mas eu decidi não cumprir isso, pois a considerava ilegal. Já bastavam as concessões cassadas.
– O Sr. sempre foi batalhador da educação, inclusive no Congresso. Como acha que educação e radiodifusão estão convivendo no Brasil?
– Temos uma boa rede de televisão educativa, estatal. Mas uma rede nacional interligada, no caso da educação, ainda não temos. Uma vez convenci Chateaubriand de que deveria comprar um canal que o seu amigo, o industrial Cândido Fontoura, do Biotônico Fontoura, tinha obtido em São Paulo, mas não conseguira pô-Io no ar. O meu objetivo era o de instalar uma TV educativa. O Chateaubriand concordou, comprou o canal, mas depois, com a crise que sofremos, vendemos ao governo de São Paulo. É a atual TV Cultura, da Fundação Padre Anchieta.